Texto de Charles Feitosa para a orelha de Canção, estética e política: ensaios legionários

Por que escrever um livro de filosofia em torno da Legião Urbana? É apenas uma banda de rock, diriam alguns, com letras e arranjos simples, como tantas outras que surgiram no cenário brasileiro dos anos 80. Nada mais injusto. A aparente simplicidade da obra da Legião Urbana esconde diversas matizes e nuances. Enquanto os outros grupos da época se revezavam entre canções românticas ou canções de revolta, Renato Russo e sua trupe criavam sons híbridos poderosos, capazes de reunir na mesma levada, versos de amor e de protesto (como na música “Índios” de 1986). Isso foi um das marcas da originalidade da Legião, capaz de, em um mesmo gesto musical, conectar o universal com o particular; o coletivo com o individual; o político com o afetivo; instâncias essas que a história do ocidente sempre insistiu em separar (vide a tragédia grega antiga Antígona ou os dramas modernos de Shakespeare).
Nesse sentido o livro Canção, Estética e Política -- Ensaios Legionários de Marcos Carvalho Lopes deve ser saudado como um importante acontecimento literário e cultural. Em primeiro lugar, porque em uma época de muitas homenagens a Legião, na forma de biografias, filmes e shows, faltava um livro que ousasse dialogar com a densidade do trabalho de Renato Russo e parceiros. Em segundo lugar porque representa mais um importante avanço para a filosofia universitária brasileira, que ainda teima em fixar seus olhos na cultura europeia e a ignorar o que se passa a sua volta. Precisamos urgentemente, cada vez mais, de mais e melhores livros que se proponham a pensar filosoficamente nossa própria cultura, nos seus fundamentos estéticos e políticos.
Os Ensaios Legionários propõem diversas chaves de compreensão das canções da Legião, percorrendo temas tão diversos, como complexos, tais como o tempo, o cotidiano, o amor, a existência, a sociedade de consumo, a solidão, os rumos do país, os impasses da arte, etc. Essas chaves de leitura não pretendem ser definitivas, nem esgotar o sentido das canções, ao contrário, elas servem muito mais para desvelar outras e variadas portas, que ainda precisarão ser abertas e exploradas. Se a música da Legião nos impelia a dançar, a cantar e a pensar, o leitura do livro de Marcos Carvalho Lopes nos convida a escutar novamente essas canções com olhos e ouvidos renovados. 

Charles Feitosa, autor de Explicando a filosofia com arte, Charles Feitosa é professor e pesquisador do Programa de Pós-Gradução em Artes Cênicas da UNIRIO, com pós-doutorado em Filosofia pela Universidade de Potsdam-Alemanha e doutorado em Filosofia na Albert Ludwigs Universität Freiburg, no mesmo país.

Sumário

Canção, Estética e Política: Ensaios Legionários



Sinopse:
O livro Canção, estética e política: ensaios legionários recontextualiza a obra da Legião Urbana em sua tentativa de traduzir seu próprio tempo em canção. O período de redemocratização trouxe na música popular um sério questionamento sobre o país e sua estrutura política e social. Os filhos da Ditadura não se acomodaram em simplesmente negar a pátria ou construir um discurso niilista. O rock brasileiro dos anos 80 representou bem o processo de abertura política, globalização e urbanização que a sociedade brasileira enfrentava. Mais do que isso, a transformação de valores com o advento de uma indústria' cultural forte e liberta da censura, tornou-se tema e problema para os roqueiros. A negação do 'fascismo cultural' e a consciência de que a estrutura autoritária transcendia o modelo político, levou alguns roqueiros oitentistas a propor em suas letras uma espécie de "Utopia Lírica" através da qual, mudanças nas formas de convivência abririam espaço para uma redescrição da maneira de sentir/perceber a política, o que acarretaria transformações sociais. É esse tipo de romantismo utópico que encontramos na obra da banda de rock Legião Urbana, que, dialogando com a filosofia, literatura, a história do rock e da canção popular, arte, cinema e política, traduziu em suas canções as esperanças e desilusões dos jovens brasileiros da abertura democrática à "Era Collor". A banda representou a transição do discurso épico (que marcou as eleições diretas para o executivo federal em 1989) para o relativo domínio da prosa na política brasileira: com a mudança em suas letras de um discurso ético-ecumênico (no fim dos anos 80) para o assombro surrealista (no começo da década de 90). Essa transição marca uma mutação na forma de vínculo entre público e privado que põe em xeque a própria possibilidade de Utopia(s). . Os ensaios analisam a construção conceitual dos álbuns da Legião e a trajetória de Renato Russo, tratando pormenorizadamente de suas canções e de como elas formulam uma perspectiva filosófica de política cultural. Em apêndice o livro trás um glossário que dá uma breve descrição do interdiscurso presente em cada canção da Legião Urbana.