As várias estações da Legião - Gabriel Sá no Correio Braziliense 15/07/2012

Marcos Carvalho Lopes, 31 anos, era professor de filosofia em escolas estaduais de sua cidade natal, Jataí (GO), quando decidiu, no começo dos anos 2000, se utilizar de letras de canções da Legião Urbana para despertar em seus alunos interesse pela disciplina. Fã da banda desde meados da década anterior, o jovem não era do tipo que ia a shows, mas se impressionava com as ideias que embasavam os escritos de Renato Russo. Os estudos informais foram ganhando consistência e Marcos decidiu colocá-los no papel. Entre 2001 e 2007, dedicou-se a escrever Canção, estética e política — Ensaios legionários, que chega agora às lojas, pelo Mercado de Letras.

Um dos primeiros estalos de que a obra da Legião poderia manter um diálogo com questões filosóficas veio com a canção Se fiquei esperando meu amor passar, do álbum As quatro estações (1989). “Ela mistura a descrição de uma relação afetiva idealizada com um canto do catecismo católico. Para mim, como adolescente, essa junção satisfazia certa busca platônica que nessa fase da vida se torna muito chamativa. Como diria Nietzsche, o cristianismo seria um platonismo para massas”, detalha Marcos. Já no início da letra de Sereníssima, (“Sou um animal sentimental/ Me apego facilmente ao que desperta meu desejo”), o estudioso percebeu uma alusão ao filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau, que descreveu o homem desta forma.

Foi Rousseau, inclusive, que, ao lado do britânico Bertrand Russell, teria inspirado o sobrenome escolhido pelo jovem Renato Manfredini Júnior: Russo. O livro pode ser visto como uma biografia idealizada deste personagem criado pelo compositor, a partir do momento em que se assume assim. “Para se inventar, você constrói uma obra. Renato dizia que sua vida não era importante, o que havia de importante estava em sua obra”, relata o autor. A publicação mergulha pelos álbuns da Legião Urbana, buscando perceber a relação deles com seu tempo, destacando algumas canções e o interdiscurso presente nelas.

A filosofia, aqui, foge um pouco das questões epistemológicas e busca se aproximar de uma abordagem mais pragmática. “A tarefa é tentar traduzir nosso tempo em pensamento. Para isso, os produtos culturais, que são signos de nosso tempo, devem ser investigados”, explica Marcos. Há, no livro, uma tese central que aponta para o conceito de utopia lírica, termo cunhado pelo filósofo Renato Janine Ribeiro para falar da anulação do “eu”. As canções de Russo estariam permeadas pela visão de que o indivíduo não é importante, e sim a coletividade. Isso tem muito a ver com o sentimento de nação unida que aflorava na abertura política dos anos 1980, pós-ditadura militar.
 
Referências

Algumas questões percebidas por Marcos Carvalho Lopes em canções da Legião Urbana:

Eduardo e Mônica
A canção inverte um paradigma social, os papéis tradicionais da mulher e do homem, colocando este como o dominado.

Faroeste caboclo
O personagem João de Santo Cristo remete ao mito do “bom selvagem”, que diz que “o homem nasce bom e a sociedade o corrompe”. Essa temática também está presente em Índios.

A montanha mágica
De clima medieval, tem o mesmo nome do livro de Thomas Mann, em que a busca pelo autoconhecimento passa pelo uso de drogas. Pode ser vista como a experiência de Russo com a heroína, uma “especiaria”.

O teatro dos vampiros
Crítica à televisão e à alienação, aborda o vazio do mundo consumista, que vive de aparências, e as competições em uma sociedade capitalista.