Entrevista para o Fã Clube Filhos da Revolução: 31/05/2013 “Os anos 80 não acabaram e continuam (e continuarão) sendo reiventados”, diz autor de livro sobre as canções da Legião Urbana


por Clarissa Pacheco

Marcos Carvalho Lopes é filósofo, goiano de Jataí, cidade localizada a 293 km da capital Goiânia. Há mais de uma década, começou a lecionar a disciplina na cidade. Hoje, é professor da UNIRIO, além de doutorando em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No ano passado, Marcos lançou o livro ‘Canção, estética e política: ensaios legionários’, resultado da tentativa de aprofundar a análise sobre o rock nacional e justificar as canções como um caminho para o pensamento. O autor do livro que “recontextualiza a obra da Legião Urbana em sua tentativa de traduzir seu próprio tempo em canção” conversou com a gente!



- As letras das músicas da Legião se tornaram uma espécie de "glossário" para entender o cenário do Brasil naquela conjuntura política da década de 1980. Que outras bandas de rock você acha que alcançaram esse patamar?



A Legião Urbana provavelmente é a mais representativa dos anos 80-90 por conta da popularidade que alcançou e que mantém. No entanto, essa pergunta é muito complicada porque todos os grupos de uma forma ou de outra dialogavam com seu contexto e entre si e construíam um panorama do momento (seja de denúncia, indiferença, alienação, cantando dor de cotovelo ou a revolução).

Se eu fosse escrever algo “assim” colocaria em primeiro plano um “triunvirato”: Legião Urbana, Titãs, Paralamas do Sucesso e Engenheiros do Hawaii (como os três mosqueteiros, são na verdade quatro com a chegada tardia do último da turma). Estas bandas alcançaram grande popularidade naquele momento o que ajuda a justificar sua escolha, e mantiveram de uma forma ou de outra o “complexo de épico” da MPB em sua ânsia de representar o país. Já escrevi sobre como Cazuza redescreveu a noção de malandragem; ele também deve estar no foco primário de qualquer análise desse tipo. Já esbocei algo sobre o Biquíni Cavadão, RPM, Blitz e Ultraje a Rigor. Tenho curiosidade de entender melhor quem foi Júlio Barroso e o que poderia ser o Gang 90. Lobão, Barão Vermelho, Plebe Rude, Nenhum de Nós, Inocentes, Kid Abelha, Camisa de Venus, Hojerizah... A lista é enorme e podia incluir nomes que efetivamente não fizeram sucesso (penso em uma banda da minha cidade natal, Jataí, chamada The Smmurfs que nunca chegou a gravar nada em vinil, mas que faz parte da mitologia local: quem conhece ou tem uma fita k-7 do grupo conta vantagem).  Em verdade, não sou um especialista e não vivi plenamente este período (já que nasci em 80), por isso sei que há muita história pra contar, principalmente para contar de modo diferente. Por exemplo, na segunda metade da década de 90 algumas bandas que não fizeram (ou mantiveram) um sucesso tão grande nos anos 80 ressurgiram com força e  embaralharam a memória de muita gente, o que significa que o passado não é mais como era antigamente. Para muitos Capital Inicial e Ira – e talvez os Titãs – podem justificadamente ser consideradas como bandas dos anos 90-00, pois foi no fim dessa década ou na virada do século que alcançaram maior popularidade (acústica). Tudo depende de qual história você quer contar. Nos anos 80 algumas bandas de pouca vendagem, mas da qual faziam parte jornalistas especializados em rock, costumavam ganhar os principais prêmios da crítica. Imagino que alguns dele já devem ter rascunhado algo como “A verdadeira história do rock brasileiro” em que são protagonistas. Nesse sentido os anos 80 não acabaram e continuam (e continuarão) sendo reinventados.







- A Legião Urbana não teve muitas músicas censuradas, talvez por começar a aparecer já mais próximo ao final do regime, durante o governo de Figueiredo. Mesmo assim, você acredita que as letras da Legião Urbana e de outras bandas de rock eram mais agressivas ao regime do que as censuradas de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, por exemplo?



Acho que não cabe comparação porque o momento era bem diferente e os interesses e possibilidades também. Comparando a Legião com a Legião, as letras do Aborto Elétrico (que apareceram em Que País é Este) são efetivamente mais violentas, porém uma violência mais (auto)destrutiva e niilista do que revolucionária. 



- Por que a escolha pelas músicas da Legião Urbana? A banda fez parte da sua vida de alguma forma?



A Legião Urbana sempre me intrigou de uma forma que não sei explicar e é melhor não tentar fazê-lo. É um tipo de obcessão que ajudou a formar minha identidade e fazia parte daquilo que era motivo de longas conversas com amigos na busca adolescente por sentido. Este livro que escrevi sobre a Legião não deve ser visto com uma tentativa de simplificar seu significado propondo uma interpretação final, mas uma tentativa de multiplicar sentidos, promover diálogo e debate. Como sou filósofo, pensei com a Legião, principalmente com as letras de Renato Russo e sua tentativa de articular uma esperança para o país que repercutia em quem se identificava com suas palavras.



- Você vê conotação política ou filosófica nas canções compostas na última década aqui no Brasil?



Com certeza existe conotação e denotação, mas política nós devemos fazer primordialmente não com canções e nem somente com o voto. Já quando se pensa em termos de filosofia a coisa é um pouco mais complicada porque compositores podem citar filósofos (até mesmo de modo errado) e slogans filosóficos, buscar inspiração conceitual em Nietzsche ou musicar O mundo de Sofia ou descartar tudo isso e qualquer pretensão deste tipo. O trabalho de avaliar estas relações diretas ou indiretas ou inconscientes ou inconsistentes é de alguém que tenha a petulância e ingenuidade de reivindicar o nome de filósofo. Pra fazer esta reivindicação de modo mais convincente é preciso ter alguma formação técnica (ainda que para criticar e esquecer está técnica). É preciso promover relações e encontros; correr este risco.

Mas para não me desviar tanto da tentativa de dar uma resposta para sua questão, posso dizer que continua existindo mercado para um tipo de canção que tanta representar/pensar o país, como diz Lenine, fazendo uma crônica de sue tempo. Com certeza não há mais a mesma repercussão que existia em outros momentos da história, por exemplo, quando a Ditadura Militar permitia a coesão de discurso contra um Grande Outro que não era de forma alguma imaginário. Hoje temos mais possibilidades de discurso e reivindicações diversas, a dificuldade esta em buscar um tipo de identificação não demagógica que se dê pela cidadania através da música. Misturar estética e política é correr o risco de alimentar tendências totalitárias: é só pensar no “fascismo” das canções que exaltam candidatos em tempos eleitorais, da força de mobilização dos hinos nas igrejas ou da Internacional Comunista ou do Hino Nazista (“Viktoria Sieg Heil”).   




- No blog, você fala da música popular brasileira como parte da formação da identidade de alunos do Ensino Médio. Que influência teve a música dos anos 80 nessa formação, e como o cenário musical de hoje interfere nessa formação de identidade?



Como explica Hobsbawn, a partir da década de 60 os adolescentes passaram a formar sua identidade não mais através de livros considerados sagrados, mas de produtos feitos para consumo de massa, canções, filmes, moda, televisão etc. O rock brasileiro dos anos 80 faz parte dessa transição, mas com a especificidade de poder questionar de forma mais despudorada os costumes (e com isso modificá-los). Essa forma mais irônica de abordar os costumes aparece, por exemplo, em grupos de teatro, programas de televisão, uma possível modificação do humor (estou especulando agora, não tenho condições de adensar estas insinuações). 





- Onde encontramos o seu livro para comprar?



É possível comprar diretamente com a editora Mercado de Letras e nas principais livrarias on line (coloquei uma lista de links aqui http://ensaioslegionarios.blogspot.com.br/p/onde-comprar.html). Nas lojas físicas da Livraria Cultura você pode encontrar (ou encomendar). 

Fonte:http://blogfilhosdarevolucao.wordpress.com/2013/05/31/os-anos-80-nao-acabaram-e-continuam-e-continuarao-sendo-reiventados-diz-autor-de-livro-sobre-as-cancoes-da-legiao-urbana/

A fórmula do punk da Legião Urbana

Há pouco encontrei em um CD de back up alguns dos arquivos de textos em que começava a projetar os "ensaios legionários". Este texto tentava uma explicação da diferença do punk da Legião Urbana a partir de uma interpretação da canção Marcianos Invadem a Terra. Este deve ser de 2002 ou algo próximo, então não havia muito da informação hoje disponível. Espero que ele ainda faça sentido. Alguns de meus antigos alunos talvez ainda tenham algumas folhas xerocadas com alguns destes textos que serviam para catequese, que dizer, aulas. É que como sempre dividia em duas colunas para colocar a letra e o texto de comentário a estética da coisa era parecida com aqueles folhetos litúrgicos. Neste caso, o texto foi preparado para um pequeno curso sobre a Legião... 

Como um dos primeiros esboços o textos contém alguns problemas: uma terminologia que não usaria, ideias que poderiam ser explicadas de modo mais demorado, alusões a outras partes do projeto, uma avaliação extremamente caricatural (e infeliz, porque parcial) de Caetano contaminada pela narativa de Ricardo Alexandre que o toma como uma espécie de "vilão" etc. As imagens de David Bowie no livro talvez se expliquem melhor aqui. Existe mais coisas nestes baú, aos poucos avalio o que pode ser interessante para postar aqui. Inté!


Marcianos Invadem a Terra 

(Renato Russo)

Diga adeus e atravesse a rua
Voamos alto depois das duas
Mas as cervejas acabaram e os cigarros também
Cuidado com a coisa coisando por aí
A coisa coisa sempre e também coisa por aqui
Sequestra o seu resgate, envenena a sua atenção
É verbo e substantivo/adjetivo e palavrão
E o carinha do rádio não quer calar a boca
E quer o meu dinheiro e as minhas opiniões
Ora, se você quiser se divertir
Invente suas próprias canções
Será que existe vida em Marte?
Janelas de hotéis
Garagens vazias
Fronteiras
Granadas
Lençóis
E existem muitos formatos
Que só têm verniz e não tem invenção
E tudo aquilo contra o que sempre lutam
É exatamente tudo aquilo o que eles são
Marcianos invadem a Terra
Estão inflando o meu ego com ar
E quando acho que estou quase chegando
Tenho que dobrar mais uma esquina
E mesmo se eu tiver a minha liberdade
Não tenho tanto tempo assim
E mesmo se eu tiver a minha liberdade:
Será que existe vida em Marte?

Os Marcianos e a música alienígena


A fórmula do punk da Legião Urbana é sintetizada na canção Marcianos Invadem a Terra. Ela foi gravada originalmente dentro do projeto do segundo disco da Legião (Dois), mas apareceu no álbum Uma Outra Estação, lançado após a morte de Renato Russo com as “sobras” dos trabalhos anteriores.
O punk surgiu, em certo sentido, como resposta ao glamour rock no qual os astros se apresentavam como atores, elementos andróginos camaleônicos, cheios de conceitos e teatralização. A ideia era a de “confundir e entreter a platéia”[1], nesse caminho David Bowie multiplicava suas faces e personagens, afirmava (incorporando uma de suas mutações ) que “as pessoas precisavam desesperadamente de alguém para dirigi-las, ordená-las, façam isso, não façam aquilo. O mundo precisa de um novo Grande Ditador”.
É citando e distanciando-se dessa posição que em Marcianos podemos desvelar o principio punk da Legião. A letra cita Life on Mars? de Bowie (Será que existe vida em Marte? ), na fase em que ele inventou Ziggy  Stardust vocalista do The spiders from Mars. O próprio Bowie seria um alienígena representado a dura tarefa de tentar fazer sucesso na vida musical/social.[2]
Alguns apontam David Bowie como um precursor do punk, quando inventa personagens e promove certa mistura de realidade e ficção, o que seria uma característica deste “gênero” (Renato Russo também era “um personagem” ). Por outro lado, a ambiguidade de seu trabalho abre espaço para que este se torne indefinível, como uma “coisa coisando por aí” que pode ser “verbo substantivo/adjetivo e palavrão “ ao gosto do freguês. Diante da imposição da mídia, da indústria cultural, de uma música cada vez mais inacessível/difícil é que se lança o lema “se você quiser se divertir invente suas próprias canções”.
É o “faça você mesmo” (do-it-yourself ), o mais importante é a criatividade, o fato de que cada um[3]  pode fazer seu som. A dimensão cínica da indústria cultural é apontada com os versos[4]: “existem muitos formatos/ que só tem verniz e não tem invenção/ e tudo aquilo contra o que sempre lutam/ é exatamente tudo aquilo o que eles são.”
É necessário escolher um caminho mais simples onde exista liberdade. É preciso também de intensidade diante do no future[5], que toma um sentido existencial - “não tenho tanto tempo assim”. Perguntar “Será que existe vida em Marte?” é também acenar: não é preciso ser marciano para fazer música.
A violência do punk original se encontra superada ou amenizada na interpretação da Legião. O fato desta canção ser apresentada de forma acústica já mostra essa transformação. A ênfase é dada à criatividade e valorização do simples. O no future perde sua dimensão social e ganha um sentido existencialista/individual. Ainda assim, não se resolve o problema de contraditoriamente atacar e ser indústria de massa. Isto é parte do teorema.     


 

Patrulha Odara e os “marcianos” tupiniquins

O discurso de Renato sobre David Bowie faz sentido no Brasil? A resposta parece ser positiva quando lembramos que na década de 70 o Brasil teve Secos & Molhados que apresentavam a dimensão teatral e andrógina que continua presente na figura de pavão misterioso de Ney Matogrosso. O domínio dos tropicalistas, regressos do exílio, dentro do cenário cultural continha algo também de glamour como nessas declarações de Caetano no início dos anos 80:
 “Nos os músicos somos sagrados. Eu sou sagrado, o Gil é sagrado, o Milton é sagrado, o Chico Buarque é sagrado. Nós somos sagrados. Falando por mim, devo dizer que eu, Caetano Veloso, sou um homem puro.”
“Não estou aqui para ser questionado, eu sou como a Rachel Welch, quero mostrar só a beleza da minha música, como vocês só mostrariam a beleza dela. Fora daqui, antes que eu mande prender vocês todos, porque sou amigo do presidente e ele gosta da minha música.”[6]
Diante de uma elite musical “sagrada”, que se contentava, em sua maioria, em repetir formulas antigas e não se apresentava explicitamente crítica diante do lento, gradual e  (in) seguro processo de democratização que o regime ditatorial impunha no país a Patrulha Odara não podia fazer sentido... era necessário algo novo aqui também. Como dentro da ditadura o Brasil ficou de fora da maior parte da explosão do rock, era natural que diante do processo de redemocratização esse estilo ressurgisse com força.



[1] Piva, Andre. O que é punk?. Página 32.
[2] Friedlander, Paul. Rock and Roll: uma história social. Pág 354.
[3] A dimensão individualista é evidente. O do-it-yourself não deixa de ser algo parecido com o ideal do american way of life, do homem que se faz a si mesmo (self-made man ) e acaba levando ao discurso, mesmo que involuntariamente, elementos de um dizer liberal-burguês ( “quem espera sempre alcança” ). 
[4] O que pode também ser interpretado como referência aos Sex Pistols.
[5] O no future da Legião toma dimensões existenciais. Isso fica bem claro na música Tempo perdido.
[6] Alexandre, Ricardo. Dias de Luta: o rock e o Brasil dos anos 80. P.16 e 19.

Filosofia pop 2 - UFSC 24 a 26 de Abril de 2013


Nos dias 24, 25 e 26 de abril, no auditório do CFH/UFSC, ocorrerá o Filosofia Pop II. O encontro tem a intenção de estabelecer uma conexão entre o cotidiano e a formação acadêmica, mas não em defesa de uma filosofia simples e rasa (qual o nome pode sugerir). Como disse recentemente Suassuna, “A universidade brasileira ensina de costas para o Brasil e seu povo”. Desejamos promover um diálogo entre discentes, docentes e interessados, em torno de questões filosóficas e contemporâneas, ampliando o exercício do pensamento através da formação, mídia, tecnologia e cultura popular.

Cada convidado apresentará um tema, que para além de ser o seu proponente, tem também o papel de conduzir o debate. As conversas não se tratam de uma imposição ou busca por uma verdade plena, mas sim por uma erotização dos discursos, gerando movimento, pensamento e um diálogo aberto e rico em suas pontuações e construção.

Entre os convidados, estão os professores Celso Braida, Roberto Wu, Claudia Drucker e Maria de Lourdes, do departamento de Filosofia da UFSC. Também conta com a presença do músico/compositor/escritor Alberto Heller, Marcia Tiburi (Mackenzie/SP) e Marcos Carvalho Lopes (UNIRIO).
O encontro é coordenado pelo prof. Roberto Wu, organizado pelos alunos Mateus Machado, Michelle Belatto e com apoio da SeCult.


PROGRAMAÇÃO

* 24 DE ABRIL
18h30 – Abertura

19h00 – Marcia Tiburi
A filosofia e seus conteúdos desprezados – fundamentos de uma Filosofia Pop


* 25 DE ABRIL
15h00 – Roberto Wu
Lugares de indeterminação na obra musical

16h30 – Alexandre Meyer Luz
Oss – A Filosofia visita o Dojo

18h30 – Claudia Drucker
“Toda mulher gosta de apanhar?” – A ética amorosa de Nelson Rodrigues

19h45 – Maria de Lourdes Borges
Sobre o terrorismo jurídico


* 26 DE ABRIL
15h00 – Celso Braida
A atual constituição de si por meio da retocável imagem da perfeição técnica

16h30 – Alberto Heller
Clássicos e Pops: a quem (ainda) interessa estabelecer fronteiras

18h30 – Marcos Carvalho Lopes
Sobre ‘índios’, dândis e vampiros: Legião Urbana e Engenheiros do Hawaii como Filosofia

AUDITÓRIO DO CFH/UFSC





Entrevista para O Popular (10/02/2013) Canção, estética e política: ensaios legionários



Entrevista/Marcos Carvalho Lopes

“A Legião Urbana procurou representar o País”

Autor do livro Canção, Estética e Política – Ensaios Legionários (Ed. Mercado de Letras), o professor Marcos Carvalho Lopes faz uma leitura sob um prisma diferente das canções da Legião Urbana. Na obra, ele salienta os aspectos filosóficos das músicas da banda e suas articulações com o contexto histórico em que produziram. Com mestrado em Filosofia pela UFG e fazendo doutorado na área na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Marcos, que é natural de Jataí, liga Renato Russo a ideias de, entre outros pensadores, Heidegger e Rousseau, sem lhe negar toda o patrimônio musical que recebeu e produziu. Nesta entrevista, Marcos comenta algumas das canções mais emblemáticas do grupo, defende que o rock dos anos 1980 deu continuidade a uma evolução da MPB e discorda da ideia de que os jovens daquela década fossem mais politizados.

Conteúdo completo e sem edição da entrevista para Rogério Borges (de O popular)
Em seu livro, você investiga as questões filosóficas presentes na obra musical do Legião Urbana. Como elas se apresentam e quais são suas principais marcas?

Uma perspectiva filosófica aparece na obra da Legião Urbana de diversos modos e nem sempre como questões específicas ou distintamente filosóficas. Já no sobrenome artístico "Russo" que Renato escolheu para si, haveria uma junção de referências entre os filósofos Bertrand Russel, Jean-Jacques Rousseau, o pintor primitivista francês Henry Rousseau e a expressão "tá russo". Mas esta escolha não é apenas uma citação indireta, já que Renato em seu trabalho inicial pressupõe uma perspectiva utópica que se justificaria por uma natureza humana de tendência positiva (o bom selvagem) que foi corrompida pelo desenvolvimento da técnica. É o ideal de bom selvagem que acena toda vez que a Legião fala em "índios". Esta questão sobre o resgate de uma natureza romântica que foi corrompida se reconfigura de formas diversas formas dentro da obra da Legião, alegoricamente (como em Faroeste Caboclo), ceticamente (como em "Índios") e até mesmo de modo contraditório (em Sereníssima, por exemplo, Utilizam a descrição que Rousseau fazia do homem como "animal sentimental" para, a seguir afirmar: "não estou mais interessado no que sinto, não acredito em nada além do que duvido"). As transformações destas descrições se ligam aquilo que a Legião Urbana herdou da chamada Música Popular Brasileira: o desafio de representar o país e seu sentido. Esta dimensão política não se separava de interrogações existenciais, como por exemplo sobre a forma que cotidianamente escondemos de nós mesmos a finitude, fingimos não reconhecer que somos mortais (o que Heidegger chama de ser-para-a-morte acena em Tempo Perdido). Enfim, há um projeto que se desdobra em canções, discos e num discurso reflexivo que procura se aperfeiçoar na forma de pensar o individuo e o país. 

As pessoas parecem ter a tendência de achar que algo popular, de consumo de massa, é necessariamente algo superficial. O Legião Urbana desmente isso?

Este tipo de juízo é ele mesmo superficial e parece ser uma tentativa de justificar algum tipo de ressentimento. Dentro daquilo que geralmente se qualifica como produtos voltados para o consumo das "massas" há um espectro de obras que podem ser classificadas tanto positivamente como negativamente. O mesmo acontece na chamada cultura erudita: existem coisas boas e coisas ruins. As melhores geralmente ajudam as pessoas a se transformarem, modificando sua autoimagem dê modo a se adaptar e mudar hábitos que se mostram ultrapassados ou prejudiciais. As ruins afirmam "mais do mesmo", não provocam reflexão e reafirmam certos comportamentos padronizados como corretos. É difícil negar a importância de Bob Dylan, dos Beatles, de Caetano Veloso, da Legião Urbana etc. numa onda que vêm se acelerando a partir da década de 60, universalizando a ideia existencialista de autocriação e busca por algo que de modo vago podemos chamar de "autenticidade". 
 
O contexto histórico em que o grupo surgiu, em sua opinião, foi preponderante para o caminho que ele tomou, para os problemas que abordou e para as formas como fez isso?

Sim. Como o melhor daquilo que chamaram de MPB, a Legião Urbana procurou representar o país e traduzir seu tempo em canção. Uma leitura cuidadosa facilmente refuta a ideia de que o rock brasileiro dos anos 80 representou um retrocesso no que Caetano chamava de caminho evolutivo da canção popular no Brasil. Na década de 80,sem os limites da ditadura, o rock dos anos 80 pode radicalizar e desenvolver o anseio de autocriação que já acenava no tropicalismo. Isso significava tomar como relevante e dar mais espaço para o desejo em sentido democrático, ao invez de pressupor uma convergência de todos as canções numa verdade redentora, numa utopia revolucionária contra à Ditadura. Nos anos 80 a redenção e a utopia não tinham mais lugar ou eram uma pálida lembrança. A Legião teve que lidar com um contexto que corresponde a descrição de Cazuza em Ideologia, com heróis autodestrutivos que morreram de overdose, num horizonte político conservador e contrário aos anseios democráticos.
 
Você identifica algumas fases dos discursos do grupo, que foram mudando com o tempo e as transformações sociais que o Brasil vivia nos anos 1980. Quais são elas e que especificidades traziam?

Cada álbum de estúdio da Legião Urbana traz um discurso que tentar representar o país. Cada um traz transformações importantes. Mas de modo geral afirmo que houve um movimento geral da cultura brasileira a partir da chamada Era Collor que teve um significado terrível para a cultura brasileira, na medida em que colocou em xeque os anseios épicos da democracia e como isso a própria possibilidade do cantor se identificar com o país. Num sentido isso trouxe o fim da MPB, aqueles que cantam o país passaram a descrevê-lo como algo exterior e não mais de forma lírica, por isso as canções políticas passaram a flertar ou assumir a forma do rap. Essa grande mudança aparece no álbum V em sua representação surrealista da Era Collor e em o descobrimento do Brasil com o enterro de nossos problemas de dimensão pública (em Perfeição) e a "fuga" para a vida privada. Descrevo diversas mudanças anteriores com mais detalhes no livro, mas prefiro destacar aqui esta mais ampla, que apaga a marca forte de uma Utopia Lírica que acenava desde a década de 60 nas canções de Chico Buarque, Caetano Veloso, Bob Dylan, Beatles etc. 

O jovem dos anos 1980 estava mais disposto a pensar, a refletir, a debater?
Realmente o futuro não é mais como era antigamente. O tempo parece mesmo ter se achatado em um eterno presente. Com certeza o jovem dos anos 80 não tinha os mesmos desafios que assombram a juventude atual, por isso qualquer comparação é problemática e redutora. Nasci em 1980, e, para mim, a figuras caricaturais que encontrei nos livros didáticos na quarta-série (em 1989) mostrando de um lado um urso raivoso com estrela e martelo da URSS ameaçando um Tio Sam também cheio de dentes, já não era algo com muito significado para além de um maniqueísmo de desenho animado (no qual não sabia qual lado seria o "bom"). Todos pensam e "refletem" na medida em que sentem que existem problemas que lhes diz respeito, quando sentem que as coisas tem que mudar porque não estão funcionando adequadamente. Resumindo, não acho que os jovens dos anos 80 eram mais reflexivos.   

A banda Legião Urbana cantou um país em polvorosa, de fracassos econômicos, instabilidades políticas, incertezas sociais tremendas. Em sua avaliação, até onde aquele país mudou?
De modo geral os últimos anos tem sido de um progresso gradual que se traduz efetivamente na diminuição das desigualdades sociais. Um jovem no Brasil provavelmente espera ganhar mais e viver melhor do que seus pais, o que não vale para um jovem europeu (e cada vez menos para um norte-americano ou japonês). A relativa estabilidade econômica e política dá mais espaço para que as pessoas cuidem de seus desejos individuais e esqueçam o bem comum, a coisa pública. A Legião Urbana – como o rock em geral – se filia ao desejo e a busca individual de autenticidade (ainda que tal procura tenha uma dimensão pública). Se algo mudou, espero que seja um anseio cada vez maior de um desenvolvimento republicano, de uma classe média e baixa que ascende a partir de seus próprios méritos e que prosaicamente tenta modificar os costumes clientelistas. Talvez essa descrição seja uma forma de esperança: é que quero ampliar o futuro! 

 Qual a sua canção preferida da Legião Urbana e por quê?

A minha favorita é Metal Contra as Nuvens, talvez porque seja a mais longa. Mas uma explicação mais razoável está no desafio que suas múltiplas vozes trouxe para o meu trabalho: demorei alguns anos tentando entender o Lado A de V, onde esta canção aparece. Melancolia, surrealismo, ideais (adolescentes) de honra, esperança, crítica social... há um bocado disso nesta canção. 

Os roqueiros universitários da Legião foram substituídos pelos sertanejos universitários, tão na moda hoje? Teríamos involuído?

Não acredito que exista parentesco entre estes grupos para além, talvez, da afirmação de que camadas mais humildes da sociedade estão cada vez mais conseguindo frequentar a universidade, no entanto, sem que isso modifique de forma relevante seu discurso e desejo. Nas universidades cada vez mais temos um lugar de instrução e menos de formação. Há dois polos apelativos e vulgares para se fazer canção popular: o amor eterno ou o prazer constante. Parece que o sertanejo mais recente deixou de lado as promessas e ilusões inevitáveis do amor eterno (um discurso que tem em comum com os emos) e passou para o outro polo, celebrando o prazer constante (algo mais próximo do funk carioca). Vejo um progresso de costumes nesta transição entre estes polos, apesar de que a realização de qualquer deles é impossível. A Legião geralmente fugia destes dois extremos, mas isso não é algo que possa se dizer de todo rock feito por aqui. Há coisas boas e ruins, e como diz Caetano, diversas harmonias possíveis sem um juízo final.  

Entrevista para Rogério Borges publicada em O Popular de 10 de Fevereiro de 2013 (Domingo)

Entrevista/Marcos Carvalho Lopes

“A Legião Urbana procurou representar o País”

Autor do livro Canção, Estética e Política – Ensaios Legionários (Ed. Mercado de Letras), o professor Marcos Carvalho Lopes faz uma leitura sob um prisma diferente das canções da Legião Urbana. Na obra, ele salienta os aspectos filosóficos das músicas da banda e suas articulações com o contexto histórico em que produziram. Com mestrado em Filosofia pela UFG e fazendo doutorado na área na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Marcos, que é natural de Jataí, liga Renato Russo a ideias de, entre outros pensadores, Heidegger e Rousseau, sem lhe negar toda o patrimônio musical que recebeu e produziu. Nesta entrevista, Marcos comenta algumas das canções mais emblemáticas do grupo, defende que o rock dos anos 1980 deu continuidade a uma evolução da MPB e discorda da ideia de que os jovens daquela década fossem mais politizados.

Rogério Borges 10 de fevereiro de 2013 (domingo)
 
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“A Legião teve de lidar com um contexto que corresponde à descrição de Cazuza em Ideologia, com heróis autodestrutivos que morreram de overdose, num horizonte político conservador e contrário aos anseios democráticos”

Em seu livro, você investiga as questões filosóficas presentes na obra musical da Legião Urbana. Como elas se apresentam e quais são suas principais marcas?
Uma perspectiva filosófica aparece na obra da Legião Urbana de diversos modos e nem sempre como questões específicas ou distintamente filosóficas. Renato Russo, em seu trabalho inicial, pressupõe uma perspectiva utópica que se justificaria por uma natureza humana de tendência positiva (o bom selvagem) que foi corrompida pelo desenvolvimento da técnica. Esta questão sobre o resgate de uma natureza romântica que foi corrompida se reconfigura de diversas formas dentro da obra da Legião, alegoricamente (como em Faroeste Caboclo), ceticamente (como em Índios) e até mesmo de modo contraditório – em Sereníssima, por exemplo, utiliza a descrição que Rousseau fazia do homem como “animal sentimental” para, a seguir, afirmar: “não estou mais interessado no que sinto, não acredito em nada além do que duvido”. As transformações destas descrições se ligam àquilo que a Legião Urbana herdou da chamada música popular brasileira: o desafio de representar o País e seu sentido. Esta dimensão política não se separava de interrogações existenciais, como sobre a forma que cotidianamente escondemos de nós a finitude, fingimos não reconhecer que somos mortais. Enfim, há um projeto que se desdobra em canções, discos e num discurso reflexivo que procura se aperfeiçoar na forma de pensar o indivíduo e o País.
As pessoas parecem ter a tendência de achar que algo popular, de consumo de massa, é necessariamente superficial. Legião Urbana desmente isso?
Este tipo de juízo é ele mesmo superficial e parece ser uma tentativa de justificar algum tipo de ressentimento. Dentro daquilo que geralmente se qualifica como produtos voltados para o consumo das massas, existe um espectro de obras que podem ser classificadas tanto positiva como negativamente. O mesmo acontece na chamada cultura erudita: existem coisas boas e coisas ruins. As melhores geralmente ajudam as pessoas a se transformar, modificando sua autoimagem de modo a se adaptar e mudar hábitos que se mostram ultrapassados ou prejudiciais. As ruins afirmam “mais do mesmo”, não provocam reflexão e reafirmam certos comportamentos padronizados como corretos. É difícil negar a importância de Bob Dylan, dos Beatles, de Caetano Veloso, da Legião Urbana etc. numa onda que vem se acelerando a partir da década de 1960, universalizando a ideia existencialista de autocriação e busca por algo que, de modo vago, podemos chamar de autenticidade.
O contexto histórico em que o grupo surgiu, em sua opinião, foi preponderante para o caminho que ele tomou, para os problemas que abordou e para as formas como fez isso?
Sim. Como o melhor daquilo que chamaram de MPB, a Legião Urbana procurou representar o País e traduzir seu tempo em canção. Uma leitura cuidadosa refuta a ideia de que o rock brasileiro dos anos 1980 representou um retrocesso no que Caetano chamava de caminho evolutivo da canção popular no Brasil. Na década de 1980, sem os limites da ditadura, o rock pôde radicalizar e desenvolver o anseio de autocriação que já acenava no tropicalismo. Isso significava tomar como relevante e dar mais espaço para o desejo em sentido democrático, ao invés de pressupor uma convergência de todas as canções numa verdade redentora, numa utopia revolucionária contra a ditadura. Nos anos 1980, a redenção e a utopia não tinham mais lugar ou eram uma pálida lembrança. A Legião teve de lidar com um contexto que corresponde à descrição de Cazuza em Ideologia, com heróis autodestrutivos que morreram de overdose, num horizonte político conservador e contrário aos anseios democráticos.
Você identifica algumas fases dos discursos do grupo, que foram mudando com o tempo e as transformações sociais que o Brasil vivia nos anos 1980. Quais são elas e que especificidades traziam?
Cada álbum de estúdio da Legião Urbana traz um discurso que tenta representar o País. Mas de modo geral afirmo que houve um movimento geral da cultura brasileira a partir da era Collor que teve um significado terrível para a cultura brasileira, na medida em que colocou em xeque os anseios épicos da democracia e como isso a própria possibilidade de o cantor se identificar com o País. Num sentido isso trouxe o fim da MPB, aqueles que cantam o País passaram a descrevê-lo como algo exterior e não mais de forma lírica, por isso as canções políticas passaram a flertar ou assumir a forma do rap. Essa grande mudança aparece no álbum V, em sua representação surrealista da era Collor, e em O Descobrimento do Brasil, com o enterro de nossos problemas de dimensão pública e a fuga para a vida privada.
O jovem dos anos 1980 estava mais disposto a pensar, a refletir, a debater?
Com certeza o jovem dos anos 1980 não tinha os mesmos desafios que assombram a juventude atual, por isso qualquer comparação é problemática e redutora. Nasci em 1980, e, para mim, as figuras caricaturais que encontrei nos livros didáticos na 4ª série (em 1989), mostrando de um lado um urso raivoso com estrela e martelo da URSS ameaçando um Tio Sam também cheio de dentes, já não era algo com muito significado para além de um maniqueísmo de desenho animado. Todos pensam e refletem na medida que sentem que existem problemas que lhes dizem respeito, quando sentem que as coisas têm de mudar porque não estão funcionando adequadamente. Resumindo, não acho que os jovens dos anos 1980 eram mais reflexivos.
A banda Legião Urbana cantou um país em polvorosa, de fracassos econômicos, instabilidades políticas, incertezas sociais. Em sua avaliação, até onde aquele Brasil mudou?
Os últimos anos têm sido de um progresso gradual que se traduz na diminuição das desigualdades sociais. Um jovem no Brasil espera ganhar mais e viver melhor, o que não vale para um jovem europeu. A relativa estabilidade econômica e política dá mais espaço para que as pessoas cuidem de seus desejos e esqueçam o bem comum, a coisa pública. A Legião Urbana, como o rock em geral, se filia ao desejo e à busca individual de autenticidade (ainda que tal procura tenha uma dimensão pública). Se algo mudou, espero que seja um anseio cada vez maior de um desenvolvimento republicano, de uma classe média e baixa que ascenda a partir de seus méritos e que tente modificar os costumes clientelistas.
Os roqueiros universitários da Legião foram substituídos pelos sertanejos universitários? Teríamos involuído?
Não acredito que exista parentesco entre estes grupos para além, talvez, da afirmação de que camadas mais humildes da sociedade estão cada vez mais conseguindo frequentar a universidade, sem que isso modifique de forma relevante seu discurso e desejo. Nas universidades cada vez mais temos um lugar de instrução e menos de formação. Há dois polos apelativos e vulgares para se fazer canção popular: o amor eterno ou o prazer constante. Parece que o sertanejo mais recente deixou de lado as promessas e ilusões inevitáveis do amor eterno e passou para o outro polo, celebrando o prazer constante (algo mais próximo do funk carioca). Vejo um progresso de costumes nesta transição entre estes polos, apesar de que a realização de qualquer deles é impossível. A Legião geralmente fugia destes dois extremos, mas isso não é algo que possa se dizer de todo rock feito por aqui. Há coisas boas e ruins e, como diz Caetano, diversas harmonias possíveis sem um juízo final.

Fonte: http://www.opopular.com.br/editorias/magazine/a-legi%C3%A3o-urbana-procurou-representar-o-pa%C3%ADs-1.275003