Entrevista/Marcos Carvalho Lopes
“A Legião Urbana procurou representar o País”
Autor do livro Canção, Estética e Política –
Ensaios Legionários (Ed. Mercado de Letras), o professor Marcos Carvalho
Lopes faz uma leitura sob um prisma diferente das canções da Legião
Urbana. Na obra, ele salienta os aspectos filosóficos das músicas da
banda e suas articulações com o contexto histórico em que produziram.
Com mestrado em Filosofia pela UFG e fazendo doutorado na área na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Marcos, que é natural de
Jataí, liga Renato Russo a ideias de, entre outros pensadores, Heidegger
e Rousseau, sem lhe negar toda o patrimônio musical que recebeu e
produziu. Nesta entrevista, Marcos comenta algumas das canções mais
emblemáticas do grupo, defende que o rock dos anos 1980 deu continuidade
a uma evolução da MPB e discorda da ideia de que os jovens daquela
década fossem mais politizados.
10 de fevereiro de 2013 (domingo)
Em seu livro, você investiga as
questões filosóficas presentes na obra musical da Legião Urbana. Como
elas se apresentam e quais são suas principais marcas?
Uma perspectiva filosófica
aparece na obra da Legião Urbana de diversos modos e nem sempre como
questões específicas ou distintamente filosóficas. Renato Russo, em seu
trabalho inicial, pressupõe uma perspectiva utópica que se justificaria
por uma natureza humana de tendência positiva (o bom selvagem) que foi
corrompida pelo desenvolvimento da técnica. Esta questão sobre o resgate
de uma natureza romântica que foi corrompida se reconfigura de diversas
formas dentro da obra da Legião, alegoricamente (como em Faroeste Caboclo), ceticamente (como em Índios) e até mesmo de modo contraditório – em Sereníssima,
por exemplo, utiliza a descrição que Rousseau fazia do homem como
“animal sentimental” para, a seguir, afirmar: “não estou mais
interessado no que sinto, não acredito em nada além do que duvido”. As
transformações destas descrições se ligam àquilo que a Legião Urbana
herdou da chamada música popular brasileira: o desafio de representar o
País e seu sentido. Esta dimensão política não se separava de
interrogações existenciais, como sobre a forma que cotidianamente
escondemos de nós a finitude, fingimos não reconhecer que somos mortais.
Enfim, há um projeto que se desdobra em canções, discos e num discurso
reflexivo que procura se aperfeiçoar na forma de pensar o indivíduo e o
País.
As pessoas parecem ter a
tendência de achar que algo popular, de consumo de massa, é
necessariamente superficial. Legião Urbana desmente isso?
Este tipo de juízo é ele mesmo superficial e
parece ser uma tentativa de justificar algum tipo de ressentimento.
Dentro daquilo que geralmente se qualifica como produtos voltados para o
consumo das massas, existe um espectro de obras que podem ser
classificadas tanto positiva como negativamente. O mesmo acontece na
chamada cultura erudita: existem coisas boas e coisas ruins. As melhores
geralmente ajudam as pessoas a se transformar, modificando sua
autoimagem de modo a se adaptar e mudar hábitos que se mostram
ultrapassados ou prejudiciais. As ruins afirmam “mais do mesmo”, não
provocam reflexão e reafirmam certos comportamentos padronizados como
corretos. É difícil negar a importância de Bob Dylan, dos Beatles, de
Caetano Veloso, da Legião Urbana etc. numa onda que vem se acelerando a
partir da década de 1960, universalizando a ideia existencialista de
autocriação e busca por algo que, de modo vago, podemos chamar de
autenticidade.
O contexto histórico em que o
grupo surgiu, em sua opinião, foi preponderante para o caminho que ele
tomou, para os problemas que abordou e para as formas como fez isso?
Sim. Como o melhor daquilo que chamaram de
MPB, a Legião Urbana procurou representar o País e traduzir seu tempo em
canção. Uma leitura cuidadosa refuta a ideia de que o rock brasileiro
dos anos 1980 representou um retrocesso no que Caetano chamava de
caminho evolutivo da canção popular no Brasil. Na década de 1980, sem os
limites da ditadura, o rock pôde radicalizar e desenvolver o anseio de
autocriação que já acenava no tropicalismo. Isso significava tomar como
relevante e dar mais espaço para o desejo em sentido democrático, ao
invés de pressupor uma convergência de todas as canções numa verdade
redentora, numa utopia revolucionária contra a ditadura. Nos anos 1980, a
redenção e a utopia não tinham mais lugar ou eram uma pálida lembrança.
A Legião teve de lidar com um contexto que corresponde à descrição de
Cazuza em Ideologia, com heróis autodestrutivos que morreram de overdose, num horizonte político conservador e contrário aos anseios democráticos.
Você identifica algumas fases
dos discursos do grupo, que foram mudando com o tempo e as
transformações sociais que o Brasil vivia nos anos 1980. Quais são elas e
que especificidades traziam?
Cada álbum de estúdio da Legião Urbana traz
um discurso que tenta representar o País. Mas de modo geral afirmo que
houve um movimento geral da cultura brasileira a partir da era Collor
que teve um significado terrível para a cultura brasileira, na medida em
que colocou em xeque os anseios épicos da democracia e como isso a
própria possibilidade de o cantor se identificar com o País. Num sentido
isso trouxe o fim da MPB, aqueles que cantam o País passaram a
descrevê-lo como algo exterior e não mais de forma lírica, por isso as
canções políticas passaram a flertar ou assumir a forma do rap. Essa
grande mudança aparece no álbum V, em sua representação surrealista da era Collor, e em O Descobrimento do Brasil, com o enterro de nossos problemas de dimensão pública e a fuga para a vida privada.
O jovem dos anos 1980 estava mais disposto a pensar, a refletir, a debater?
Com certeza o jovem dos anos 1980 não tinha
os mesmos desafios que assombram a juventude atual, por isso qualquer
comparação é problemática e redutora. Nasci em 1980, e, para mim, as
figuras caricaturais que encontrei nos livros didáticos na 4ª série (em
1989), mostrando de um lado um urso raivoso com estrela e martelo da
URSS ameaçando um Tio Sam também cheio de dentes, já não era algo com
muito significado para além de um maniqueísmo de desenho animado. Todos
pensam e refletem na medida que sentem que existem problemas que lhes
dizem respeito, quando sentem que as coisas têm de mudar porque não
estão funcionando adequadamente. Resumindo, não acho que os jovens dos
anos 1980 eram mais reflexivos.
A banda Legião Urbana cantou um
país em polvorosa, de fracassos econômicos, instabilidades políticas,
incertezas sociais. Em sua avaliação, até onde aquele Brasil mudou?
Os últimos anos têm sido de um progresso
gradual que se traduz na diminuição das desigualdades sociais. Um jovem
no Brasil espera ganhar mais e viver melhor, o que não vale para um
jovem europeu. A relativa estabilidade econômica e política dá mais
espaço para que as pessoas cuidem de seus desejos e esqueçam o bem
comum, a coisa pública. A Legião Urbana, como o rock em geral, se filia
ao desejo e à busca individual de autenticidade (ainda que tal procura
tenha uma dimensão pública). Se algo mudou, espero que seja um anseio
cada vez maior de um desenvolvimento republicano, de uma classe média e
baixa que ascenda a partir de seus méritos e que tente modificar os
costumes clientelistas.
Os roqueiros universitários da Legião foram substituídos pelos sertanejos universitários? Teríamos involuído?
Não acredito que exista
parentesco entre estes grupos para além, talvez, da afirmação de que
camadas mais humildes da sociedade estão cada vez mais conseguindo
frequentar a universidade, sem que isso modifique de forma relevante seu
discurso e desejo. Nas universidades cada vez mais temos um lugar de
instrução e menos de formação. Há dois polos apelativos e vulgares para
se fazer canção popular: o amor eterno ou o prazer constante. Parece que
o sertanejo mais recente deixou de lado as promessas e ilusões
inevitáveis do amor eterno e passou para o outro polo, celebrando o
prazer constante (algo mais próximo do funk carioca). Vejo um progresso
de costumes nesta transição entre estes polos, apesar de que a
realização de qualquer deles é impossível. A Legião geralmente fugia
destes dois extremos, mas isso não é algo que possa se dizer de todo
rock feito por aqui. Há coisas boas e ruins e, como diz Caetano,
diversas harmonias possíveis sem um juízo final.
Fonte: http://www.opopular.com.br/editorias/magazine/a-legi%C3%A3o-urbana-procurou-representar-o-pa%C3%ADs-1.275003